Para usuários do SUS, profissionais de saúde não sabem lidar com moradores de favela

Fonte: Medscape, 26/01/2018

Por :Teresa Santos (colaborou Dra. Ilana Polistchuck), em 23 de janeiro de 2018

Para os moradores de Rio das Pedras, comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro, o acesso à rede pública de saúde é permeado por diferentes barreiras e experiências negativas. Os moradores apontaram a incapacidade dos profissionais de saúde de lidar de forma compassiva com a população como um dos principais problemas. Esse e outros dados, coletados em entrevistas qualitativas conduzidas durante investigação da Fundação Oswaldo Cruz, foram publicados em janeiro no periódico Qualitative Health Research[1].

A socióloga Débora Castiglione, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, a epidemiologista Gina Lovasi, da Drexel University (EUA), e a Dra. Marília Sá Carvalho, da Fiocruz, analisaram informações obtidas a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com 14 adultos da comunidade carioca.

O objetivo da investigação era caracterizar o acesso aos serviços de saúde e entender como os participantes eram atendidos nas unidades e quais as percepções deles sobre esse atendimento.

A análise qualitativa é um dos desdobramentos do projeto “Diagnóstico de Saúde em Rio das Pedras”, fruto de uma parceria entre a Columbia University, nos EUA, e a Fiocruz. Além das entrevistas, essa pesquisa envolveu ainda o emprego de outras metodologias, por exemplo, testes de qualidade da água, análise de microbioma, aplicação de questionários e análise de mobilidade urbana.

“Queríamos fazer um diagnóstico de saúde, identificando quais problemas são mais comuns na população e também caracterizar o acesso ao atendimento, explicou Débora Castiglione em entrevista ao Medscape.

Com relação à investigação qualitativa, todas as 14 pessoas entrevistadas informaram já ter tido algum tipo de contato com o serviço de saúde público, e a maioria teve contato também com a rede privada.

Um dos principais resultados da investigação foi a insatisfação comum entre os participantes com as relações interpessoais estabelecidas entre os profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e os usuários.

“Não houve ninguém que falasse o contrário. Nenhum dos entrevistados disse que se sente bem tratado no serviço de saúde público”, diz Débora. Por outro lado, os participantes percebiam um atendimento mais atencioso na rede privada de saúde.

Quanto à capacidade técnica dos profissionais, esta não foi colocada em dúvida pelos entrevistados. De acordo com a especialista, não houve queixas com relação à capacidade profissional da equipe de saúde do SUS.

“Não houve insatisfação com relação à resolução dos problemas de saúde, com relação aos tratamentos prescritos. As queixas eram direcionadas às relações interpessoais e à qualidade da atenção recebida”, afirma.

Devido ao desenho do estudo, os resultados observados na investigação não podem ser extrapolados para outros cenários, não podendo, por exemplo, ser generalizados para outras populações de baixa renda.

“Precisaríamos de mais estudos em outras comunidades para poder fazer essa inferência”, diz a autora. No entanto, segundo ela, “a pesquisa traz vários dados para reflexão acerca da forma como se concretiza o acesso e o atendimento em saúde no país”.

SUS é visto como “caridade” do Estado

Nas palavras dos entrevistados: “os profissionais de saúde do SUS não sabem lidar com população de favela”. Na época da investigação, Rio das Pedras contava apenas com uma clínica de saúde da família que cobria cerca de 40% da população.

“Atualmente, já há mais uma clínica de família na região, então acredito que a pressão sob essa unidade tenha sido reduzida, mas essa queixa a respeito do atendimento era direcionada a todo o sistema público, e não apenas ao Programa Saúde da Família”, diz Débora.

De acordo com a pesquisadora, para os usuários, o atendimento na rede privada de saúde deveria ser mais atencioso, uma vez que eles estavam pagando pelas consultas. Para a pesquisadora, essa dicotomia reportada pelos entrevistados revela a lógica que está regendo as relações interpessoais nos serviços de saúde: “As pessoas parecem estar vendo no acesso ao sistema de saúde privado um acesso à cidadania e, ao contrário, o SUS, que é um direito de cidadania, um direito conquistado pela população e garantido pela Constituição, é visto mais como uma caridade e não como uma questão de direito”.

Essa lógica parece não ser exclusividade dos usuários, mas comum a todos os atores que compõem o sistema de saúde, incluindo, portanto, médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde, e também os gestores. Isso porque, embora a pesquisa em Rio das Pedras não tenha avaliado a percepção dos médicos e da equipe de saúde acerca do atendimento, a literatura traz alguns trabalhos que se dedicaram a esse tema e que apresentam resultados semelhantes.

“Um estudo feito em um centro urbano da Região Nordeste entrevistou médicos e acompanhou esses profissionais durante os atendimentos. Uma das conclusões foi que a lógica do comportamento do mesmo médico dentro do sistema público e dentro do sistema privado é diferente. No sistema público, o médico tinha a tendência de tratar os casos de uma forma muito mais rápida, muito mais geral, com menos dedicação à individualidade do paciente, mas, quando o mesmo médico estava atendendo no sistema privado, ele buscava um tratamento mais individualizado para aquele paciente, dedicava mais tempo para saber mais sobre o contexto de cada um[2]“, diz Débora, mas destaca, no entanto, que “novamente não é possível generalizar os achados, mas eles estão em consonância com os resultados verificados na comunidade carioca”.

Segundo a pesquisadora, as redes pública e privada seguem lógicas diferentes: no serviço privado o paciente é visto como um cliente e este cliente precisa ser retido.

“As pessoas percebem então que, quando estão sendo atendidas na rede privada, elas têm direito a um melhor atendimento porque estão pagando e recebem um melhor atendimento porque o provedor quer que elas voltem”, diz a autora, afirmando que “a rede privada é guiada pelo que é rentável”. Em contrapartida, acrescenta, “o sistema público se beneficia com ações de prevenção, de atenção primária, pois essas levam a menos custo”. Atualmente, a rede privada de saúde no Brasil é uma das maiores do mundo.

“Essa rede tende a se ampliar ainda mais conforme os serviços do SUS vão se deteriorando”, diz. 

A configuração do sistema de saúde brasileiro ancorado em dois níveis (público e privado) se torna ainda mais evidente quando se observa que muitos brasileiros fazem uso simultâneo das duas redes: “a rede privada no Brasil não cobre problemas de saúde que são muito custosos e/ou raros. Nesses casos, os clientes dos planos privados recorrem ao SUS e acabam fazendo uma combinação de uso de privado e público”, diz Débora.

Para ela, é possível que a carga de pacientes oriundos da rede privada de saúde sob o SUS ainda possa aumentar com a proposta de ampliação de planos de saúde populares

“Quando ampliamos a rede privada com planos de saúde populares, estamos retirando recursos do SUS para investir no setor privado. Uma camada maior da população vai ter acesso aos planos privados, mas esse serviço vai continuar sem dar resposta a certas enfermidades”, afirma ela, apontando que é possível que a percepção dos usuários do SUS sobre o atendimento possa ser ainda mais prejudicada, pois aqueles que continuarem usando a rede pública experimentarão um SUS ainda com menos recursos. A pesquisadora entende que, em um país como o Brasil, onde já há um sistema de saúde público e universal, a forma mais indicada de ampliar acesso é aumentar o investimento financeiro na melhora e ampliação desse sistema.

“A expansão de planos de saúde mais acessíveis pode contribuir para ampliar o acesso aos serviços de saúde principalmente em locais onde não há um sistema público e universal, tal como nos EUA. No caso do Brasil, o melhor seria otimizar o SUS”, considera.

Problemas vão além das dificuldades financeiras

A necessidade de ampliar o investimento em saúde pública e melhorar a estrutura do SUS é, para a autora, uma questão urgente. Mas, a melhora da experiência do usuário com relação ao atendimento recebido também envolve outros aspectos.

“Tenho acompanhado debates que estão ocorrendo em Portugal, país que tem um dos melhores sistemas de saúde do mundo, e que também é público e universal. Nos últimos anos, com uma série de tentativas de privatizar o sistema, a percepção das pessoas foi piorando, embora a qualidade técnica tenha se mantido essencialmente igual”, considera, ressaltando que ainda não há evidências publicadas sobre essa mudança, mas ela tem sido apontada por diversos especialistas portugueses.

“Dessa forma, creio que melhorar a estrutura do SUS não vai levar necessariamente a uma melhora da experiência do usuário quanto à relação médico-paciente”, destaca.

Para Débora, é preciso repensar a forma como se vê o SUS e pensar como as políticas desenvolvidas no país, como o contexto político do Brasil nos últimos anos, tem impactado as relações interpessoais nos serviços de saúde.

“Deveríamos ampliar e valorizar esse debate sobre o SUS como parte da democracia, como um direito dos brasileiros e não como uma caridade. Muitos entrevistados disseram que os médicos deveriam ser treinados para lidar com a população quando trabalham no SUS. Acho que é uma proposta boa. As faculdades de medicina e das demais áreas de saúde, o próprio Ministério da Saúde e também os serviços deveriam dar mais atenção às relações interpessoais estabelecidas entre os profissionais e os pacientes”, defende.

É importante, destaca, que tanto o paciente quanto os profissionais de saúde saibam valorizar o serviço de saúde e valorizar o fato de ser uma conquista e um direito.

“Toda relação precisa ser mediada por essa lógica, em vez de ser mediada pela lógica de que é uma caridade que o Estado oferece. O SUS não é uma caridade, é uma conquista e pode ser uma peça-chave para a construção de uma vida digna para a população brasileira”, conclui.