A Corrida pela Vacina Contra o Coronavírus

A Corrida pela Vacina Contra o Coronavírus

A busca por uma vacina contra o coronavírus é o centro das atenções em todo o mundo. Neste momento, há mais de 140 imunizantes em desenvolvimento para prevenir a covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019), sendo que a maioria está em fase pré-clínica e apenas três chegaram à etapa em que serão ministrados a milhares de pessoas para avaliar sua eficácia. Os testes em grande escala aumentam as chances de observar efeitos que não foram vistos em um número menor de pessoas.

Duas dentre as substâncias que embalam as esperanças de controlar a pandemia do novo coronavírus serão testadas no Brasil ─ a que foi desenvolvida pela University of Oxford, no Reino Unido, em parceria com a farmacêutica AstraZeneca, e a vacina da empresa chinesa Sinovac Biotech. Elas passaram com sucesso pelas fases de testes em animais e com grupos menores de seres humanos. Estima-se que 14 mil voluntários participem dos testes clínicos no Brasil. O país entrou no radar das empresas que lideram a corrida das vacinas porque ainda está, infelizmente, em curva ascendente do número de casos, o que é um cenário considerado favorável para os testes.

Pesquisadores das mais variadas nacionalidades trabalham para chegar a uma formulação capaz de ativar uma resposta robusta contra o novo coronavírus. Há imunizantes com vírus inativados, proteínas recombinantes, pedaços de genes, nanopartículas e vetores virais.

“Muitas dessas tecnologias haviam sido tentadas contra alguns coronavírus anteriores, como os responsáveis pela síndrome respiratória aguda grave (SARS, sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome) e síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS, sigla do inglês, Middle East Respiratory Syndrome). Como as epidemias de SARS e MERS não foram adiante, o investimento para a criação de vacinas também foi interrompido”, explicou ao Medscape o Dr. Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

“A expectativa é que essas vacinas estimulem a imunidade humoral e celular”, disse o Dr. Celso Granato, infectologista, pesquisador especializado em virologia, e diretor-médico do Grupo Fleury. Ele explicou que a imunidade por anticorpos, ou humoral, combate o vírus quando ele já está na circulação sanguínea, a caminho dos órgãos-alvo, porém fora das células. É a resposta imunitária celular que vai combater os vírus que infectaram as células.

“São glóbulos brancos do tipo T, capazes de reconhecer uma célula contaminada e matar essa célula.” Nos casos de covid-19 mais grave, por exemplo, muitos órgãos são atingidos pelo SARS-CoV-2 (sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), vírus causador da doença.

Outra interrogação é sobre a intensidade da imunidade estimulada por essas vacinas.

Qual seria o limite de proteção contra a covid-19?

“Nós não sabemos a quantidade de anticorpos necessária para o indivíduo ficar protegido. É o que chamamos de correlato de proteção. Para cada vacina é necessária uma quantidade de anticorpos. Para a covid-19 ainda não temos ideia de quantos anticorpos serão necessários”, disse o Dr. Renato.

De acordo com o especialista, seria interessante estabelecer padrões para os dados entre os laboratórios, para que as diferentes vacinas possam ser comparáveis. A medida se faz ainda mais necessária considerando que haverá mais de uma vacina e a possibilidade de uso combinado.

Os estudos para conhecer a eficácia das vacinas são feitos com dados provenientes da comparação entre as pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 no grupo que recebeu a vacina e o grupo de controle. Os indivíduos vacinados também serão avaliados para aferir a quantidade de anticorpos que produziram, assim como as pessoas que tiveram a doença e ficaram curadas.

“Alguns trabalhos estão mostrando que as vacinas em fase mais adiantada de pesquisa estimulam uma quantidade maior de anticorpos do que têm aqueles que se curaram naturalmente da doença”, disse o Dr. Celso. É mais um aspecto para o qual não há ainda padrões internacionais.

Muitas outras discussões acompanham o início dos testes no Brasil, como o número de doses, as condições de produção e distribuição, o financiamento ou o compartilhamento de tecnologia.

“Uma vacina licenciada na Europa pode ser compartilhada em plataformas que permitam que elas cheguem aos mais vulneráveis”, disse o Dr. Renato. Mas a questão mais premente é, sempre, quando a primeira vacina estará disponível. A estimativa mais otimista aponta para o início de 2021. Em entrevista à empresa internacional, a Pfizer chegou a cogitar a possibilidade de começar a distribuir o imunizante que está desenvolvendo antes do final de 2020.

A princípio, a expectativa é que os resultados preliminares dos estudos brasileiros de fase 3 verificando a eficácia da vacina ChAdOx1 nCoV-19 (desenvolvida pela University of Oxford em parceria com a AstraZeneca) por meio de testes em larga escala já estejam disponíveis em outubro ou novembro de 2020. Cinco mil pessoas participarão dos estudos no Brasil. Ao todo, 50.000 voluntários participarão da pesquisa realizada também na África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos. Milhares de participantes já foram vacinados no Reino Unido nas fases anteriores.

Na semana passada, teve início a vacinação de profissionais de saúde e pessoas com elevado risco de exposição à covid-19 recrutadas pelo Centro de Referência de Imunobiológicos Especiais (CRIE), em São Paulo. Os demais voluntários serão recrutados pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR), no Rio de Janeiro, e também serão feitos estudos clínicos na Bahia. Um grupo receberá uma dose da vacina candidata e outro receberá uma dose de uma vacina meningocócica quadrivalente (ACWY). Os estudos no Brasil são liderados pela Dra. Lily Yin Weckx, médica, pesquisadora e coordenadora do CRIE da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Essa vacina é feita com uma versão enfraquecida de um adenovírus de chimpanzés (causador de resfriados nesses animais) que foi geneticamente modificado por meio da inserção de gene da proteína usada pelo novo coronavírus para penetrar as células humanas. Toda essa bioengenharia é aplicada para que o adenovírus leve a proteína do coronavírus para dentro do organismo humano, estimulando-o a produzir anticorpos. O vírus usado como carreador não se multiplica porque foi retirada uma parte do código genético dele.

“Não há, atualmente, nenhuma vacina no mundo com essa tecnologia de vetor licenciada. Seria a primeira vacina de vetor do planeta”, observou o Dr. Renato.

“Nos estudos pré-clínicos com camundongos, primatas não humanos, furões e porcos, a vacina se mostrou extremamente eficaz. Estudos de biodistribuição mostraram que, quando se injeta essa vacina, o adenovírus fica confinado no local da vacina. No máximo, o vírus fica no gânglio e não dissemina pelo organismo. A vacina passou por todas as análises toxicológicas”, disse a Dra. Lili Weckx em um webinar sobre a vacina criada pela University of Oxford no dia 16 de junho.

Ainda na semana passada, o Ministério da Saúde anunciou uma encomenda tecnológica à farmacêutica AstraZeneca para a produção da vacina no Brasil. O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Bio-Manguinhos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) irá adquirir lotes do produto antes do final dos ensaios clínicos previstos. Deste modo, a instituição receberá insumos farmacêuticos ativos (IFA) para envasar 30,4 milhões de doses, ao custo de 127 milhões de dólares. O processamento final das vacinas é a etapa mais imediata para viabilizar a introdução delas no Sistema Único de Saúde (SUS) o mais rapidamente possível, após o registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Segundo informou ao Medscape, a instituição tem plenas condições para formulação, envase, rotulagem, embalagem e controle de qualidade. A expectativa da AstraZeneca é de que um primeiro lote, com 15,2 milhões de doses possa ser produzido até dezembro de 2020 e outro lote com a mesma quantidade possa ser entregue em janeiro de 2021. Após essa produção, ainda seriam necessárias etapas de registro e validação, antes da distribuição.

O acordo firmado prevê que as doses já compradas só serão distribuídas se a eficácia da vacina for comprovada. Se isso acontecer, mais de 70 milhões de doses serão fabricadas pelo próprio Bio-Manguinhos ao custo de 2,30 dólares por dose. Em paralelo, a Fiocruz fará as adequações em suas instalações para incorporar a produção dos insumos farmacêuticos ativos com o objetivo de se tornar autossuficiente em todas as etapas do processo. A previsão é que a incorporação completa dos insumos farmacêuticos ativos para as vacinas contra a covid-19 seja concluída nos primeiros meses de 2021.

De acordo com a assessoria de imprensa da Bio-Manguinhos/Fiocruz, a instituição focará em uma única vacina para investir em uma plataforma tecnológica específica no seu parque produtivo. A instituição já fornece vacinas que imunizam contra febre amarela, pneumonia, poliomielite, rotavírus, sarampo, caxumba, rubéola e varicela.

A segunda vacina que será testada no Brasil é a Coronavac (nome comercial), criada pela companhia de biotecnologia chinesa Biotech Sinovac. Ela será administrada a 9 mil voluntários brasileiros em 12 cidades do país. O início dos testes ainda depende da aprovação dos protocolos de pesquisa da Anvisa e de comitês de ética em pesquisa. Na China, os ensaios clínicos foram liberados em abril.

O acordo com a empresa chinesa anunciado pelo governo de São Paulo em 11 de junho prevê o fornecimento das doses para os testes e a transferência da tecnologia de produção para o Instituto Butantan, em São Paulo.

“Se for efetiva, nós estaremos com a vacina na mão”, disse em entrevista coletiva o presidente do Instituto Butantan, Dr. Dimas Covas. O governo informou o investimento de 85 milhões de reais nessa parceria. A vacina da Sinovac Biotech é produzida com fragmentos inativados do SARS-CoV-2.

“Os pesquisadores pegaram 11 tipos de coronavírus de lugares diferentes. Cinco da China, três da Itália e três da Inglaterra, porque eventualmente podiam ter diferenças entre eles. E então cultivaram em cultura de células de macaco e inativaram esse vírus com uma substância de laboratório”, explicou o virologista Dr. Celso.

Essa é uma tecnologia de produção de vacina já bastante conhecida desde a década de 60. O sistema imune acredita que o agente infeccioso morto, ou parte dele, representa um perigo real e desencadeia o processo de proteção, como descreve a Fiocruz. Exemplos de vacinas inativadas: DPT, hepatite A, hepatite B, raiva, pólio-Salk, pneumococo, meningococo, influenzahaemophilus do tipo-b, febre tifoide e cólera.

“É a mesma tecnologia usada na vacina contra a dengue, e que já dominamos no Instituto Butantan, o que é uma vantagem para nós”, disse o Dr. Dimas.

Vacinas em desenvolvimento no Brasil

Além das estrangeiras, há algumas vacinas em desenvolvimento no país. A própria Fiocruz está envolvida em diversas iniciativas para a criação de imunizantes. Uma delas envolve uma tecnologia inédita para a criação de uma vacina, feita com pequenas partes sintéticas de proteínas do vírus.

“Nessa abordagem, os peptídeos são sintetizados de forma química e acoplados a nanopartículas para melhorar a apresentação ao sistema imune (peptídeos frequentemente não são imunogênicos devido ao seu tamanho)”, explicou ao Medscape o Dr. Sotiris Missailidis, vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico do Bio-Manguinhos/Fiocruz. Essa formulação inclui epítopos – a menor porção de antígeno com potencial de gerar resposta imune – de células B e de células T do sistema imune.

“Optamos pela correlação entre os dois. Temos a liberdade de usar peptídeos de diferentes partes da proteína ou de diferentes proteínas, e de resposta de imunidade humoral (linfócitos B/produção de anticorpos) e imunidade celular (através dos linfócitos T)”, disse o Dr. Sotiris.

“No caso do SARS-CoV-2, os anticorpos neutralizantes têm mostrado baixa duração, e a imunidade celular em muitos casos desempenha o principal papel.”

Outra vacina da Fiocruz utiliza fragmentos do vírus capazes de estimular a melhor resposta imune. Para tanto, estão sendo testadas diferentes construções da proteína S (de spike, a principal proteínapara a ligação do vírus SARS-CoV-2 nas células do paciente).

A instituição desenvolve também uma vacina feita com o vírus influenza, causador da gripe. Uma das possibilidades é criar uma vacina bivalenteƒ, que possa ser usada contra o Influenza e o novo coronavírus.

O Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP) está trabalhando com uma perspectiva de mais longo prazo. Ali, sob a liderança do professor titular de imunologia e alergia da USP, Dr. Jorge Kalil, está em elaboração uma vacina com tecnologia inédita: “deverá ser uma segunda geração de vacinas”, disse o Dr. Kalil.

Diferentemente das vacinas com vírus inativados ou que usam a proteína S para atiçar o sistema imune, essa vacina quer surpreender o vírus. No laboratório, os pesquisadores selecionaram e sintetizaram alguns peptídeos do SARS-CoV-2 que foram acoplados a partículas capazes de transportá-los pelo organismo.

“Estamos selecionando fragmentos da proteína usada pelo vírus que tenham a capacidade de se ligar a diferentes antígenos do sistema imune. Acreditamos que assim iremos induzir uma resposta protetora com muita abrangência em boa parte da população”, descreveu o Dr. Kalil. A equipe avalia a possibilidade de administrar o potencial imunizante por via oral, inalatória ou com a ajuda de nanopartículas de gordura.

No momento, os pesquisadores analisam amostras de sangue de pacientes convalescentes há cerca de um mês que estabeleceram uma boa resposta imune.

“Estamos estudando as células e o soro desses pacientes para ver exatamente o que eles reconhecem com maior precisão”, diz o Dr. Kalil. Ele espera fazer os testes clínicos no início de 2021. Por enquanto, o projeto aguarda a chegada dos recursos prometidos desde fevereiro. São 4.500.000 reais do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

“Realocamos os recursos do laboratório para avançar”, disse o Dr. Jorge em entrevista ao Medscape. O projeto envolve diversos laboratórios do Hospital das Clínicas da USP, da Unifesp e do Instituto de Ciências Biológicas (ICB/USP), que também investiga o potencial de vacinas de DNA, RNA e nanopartículas para carregar proteínas virais.

O Laboratório Especial de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan também está desenvolvendo uma vacina própria. Ela segue a mesma estratégia usada para a formulação da vacina do papilomavírus humano (HPV, sigla do inglês, Human Papilomavirus). Essas vacinas são feitas com partículas virais semelhantes ao vírus (VLP, sigla do inglês Virus-Like Particle), produzidas por tecnologia recombinante. Nesse modelo, os pesquisadores cultivam o vírus em cultura de células, extraem seu DNA ou RNA e usam o invólucro, que não causa contaminação, para levar proteínas do coronavírus para dentro do organismo.

Outras vacinas em estudo no mundo

De acordo com um mapeamento feito pelo New York Times e atualizado em 29 de junho, há três vacinas em testes de fase 3 (com milhares de pessoas para comprovar a eficácia), uma vacina aprovada para uso limitado, oito vacinas em estudos de fase 2 (ensaios de segurança com centenas de pessoas), 11 em estudos de fase 1 (segurança e dose) e 125 em etapa de estudos pré-clínicos (as vacinas são testadas em animais para avaliar se podem gerar alguma resposta imune).

A novidade mais recente dentre esse grande conjunto de substâncias candidatas a vacina foi a aprovação, em 25 de junho, da vacina chinesa feita com adenovírus com base em dados de fase 2 ainda não publicados que teriam revelado forte resposta imune. Desenvolvida pela CanSino Biologics com o Instituto de Biologia da Academia de Ciências Médicas Militares, ela foi aprovada como medicamento especialmente necessário apenas para uso militar.

Uma das maiores preocupações dos especialistas é garantir que todas as fases de verificação da dessas vacinas sejam devidamente cumpridas, sem pular etapas. Mas, por causa da urgência, há vacinas sendo testadas simultaneamente em fases diferentes. É o caso do produto da empresa alemã BioNTech, que trabalha em colaboração com a Pfizer e com a chinesa Fosun Pharma em uma vacina que usa o RNA mensageiro para fabricar proteínas virais e gerar imunidade. Em maio, a vacina foi aplicada em voluntários na Alemanha e nos Estados Unidos. O mesmo ocorre com uma vacina do Imperial College London que também usa RNA para aumentar a produção de proteína viral que estimula o sistema imune. Os testes de fase 1 e 2 começaram em 15 de junho.

Atualmente, as vacinas mais adiantadas, em fase 3, são: University of Oxford em parceria com a AstraZeneca, em fase 3 no Brasil e na África do Sul; Murdoch Children’s Research Institute, na Austrália, que avalia o potencial da vacina Bacillus Calmette-Guerin para proteger parcialmente contra o coronavírus; Sinovac Biotech, que prepara um estudo de fase 3 na China e no Brasil e anunciou a construção de uma instalação para produzir até 100.000.000 doses por ano; Sinopharm em parceria com o Wuhan Institute of Biological Products Co., Ltd., que conduzirá estudos nos Emirados Árabes com uma vacina de vírus inativado.

Em fase 2 estão as vacinas da Moderna, que usa RNA encapsulado por uma nanopartícula de gordura; a ChAdOx1, da University of Oxford e AstraZeneca, que está em fase 2/3. A Instituto de Biologia Médica da Academia Chinesa de Ciências Médicas iniciou estudos com vacina de vírus inativado em junho.

Em fase 1 estão a Inovio, que usa DNA e iniciará fase combinada 2/3 em julho ou agosto; Curevac (RNA), Genexine (DNA), Abogen e Walvax (RNA), Instituto de Pesquisa Gamaleya, na Rússia (dois adenovírus com gene de coronavírus); Novavax (fase 1 e 2, com fragmentos de coronavírus); Clover Biopharmaceutical (proteínas do coronavírus com adjuvante); e Anhui Zhifei Longcom, que está testando vacina com proteínas virais e adjuvante.

Fonte: Medscape- Por: Mônica Tarantino – 6 de julho de 2020