Diabetes, Doença Cardiovascular e Obesidade: É Preciso ‘Sair da Inércia Terapêutica

Diabetes, Doença Cardiovascular e Obesidade: É Preciso ‘Sair da Inércia Terapêutica

As relações entre diabetes, doenças cardiovasculares e obesidade são alvo de muitos estudos científicos. Mas como o conhecimento obtido é percebido e inserido na rotina clínica? Sob a coordenação do Dr. Carlos Eduardo Barra Couri, endocrinologista e pesquisador na Universidade de São Paulo (USP), a pesquisa “Receita de médico: o que pensa quem cuida de diabetes, obesidade e doenças cardiovasculares” explorou esse universo.

No total, 654 médicos cardiologistas, endocrinologistas e de outras especialidades responderam a 23 perguntas on-line entre 14 de julho e 12 de agosto de 2022. Nesta entrevista ao Medscape, o Dr. Carlos comenta os resultados da pesquisa, que contou com a colaboração da jornalista Lúcia Helena de Oliveira, da editora Clannad e de um setor de inteligência formado pelo Diacordis e pelo endoDebate (eventos de atualização científica promovidos pelo Dr. Carlos).

“Essa pesquisa é um instrumento para identificar os aspectos que precisam ser melhorados no atendimento às pessoas com diabetes, doenças cardiovasculares e obesidade, que são as doenças que mais matam no Brasil e no mundo. Queremos que essa mensagem chegue aos médicos e à sociedade”, disse o Dr. Carlos ao Medscape.

Qual é a percepção das médicas e dos médicos brasileiros a respeito das relações entre diabetes e doenças cardiovasculares?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Na minha opinião, há uma tendência médica geral de subestimar o impacto do diabetes e da obesidade na saúde cardiovascular. Na questão 13 da pesquisa, por exemplo, perguntamos qual a meta para os níveis de lipoproteínas de baixa densidade do colesterol (LDL, sigla do inglês Low-Density Lipoprotein) para o paciente que tem diabetes e já infartou. A resposta correta seria LDL < 50 mg/dL. Porém 27% dos médicos não marcaram esse valor, o que mostra desconhecimento sobre um fator importante para esses pacientes, que têm mais risco de morte. Em outra pergunta, questionamos se esse paciente deveria usar ácido acetilsalicílico (AAS), só 50% dos participantes marcaram que sim. Fico preocupado, pois essa é uma conduta super bem estabelecida há muitos anos.

Como essas escolhas interferem no cuidado com o paciente de alto risco?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Isso muda muita coisa nas condutas. A pressão arterial desse paciente com diabetes tem de ser mais baixa, o colesterol também. Mas, apesar de todas as campanhas, muitos médicos e médicas ainda não incorporaram o conceito de que o diabetes é um dos mais importantes fatores de risco cardiovascular, e que é causa de morte. Se os profissionais da medicina não se apropriarem dessas ideias, não vão conseguir ajudar o paciente a acertar os ponteiros do tratamento.

Poucos participantes indicaram saber a diferença entre inibidores do cotransportador de sódio-glicose-2 (SGLT2), como dapagliflozina e empagliflozina, e agonistas do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), como liraglutida, semaglutida. O senhor pode comentar?

Eu me surpreendi com isso, porque a indústria tem investido bastante na divulgação da ação desses medicamentos, com visitas de representantes, eventos e participação em congressos. Além disso, um quarto dos participantes acham que a metformina tem benefícios cardiovasculares comprovados. A metformina está completando 100 anos agora, e é um grande caso de remédio velho e barato, porém bom. Mas uma coisa é ser boa para controle da glicose, outra coisa é reduzir o risco de eventos cardiovasculares, o que não ocorre. A pioglitazona é menos famosa, mas comprovadamente reduz casos de infarto agudo do miocárdio e acidente vascular cerebral e é vendida também como medicamento genérico, sem lobby de ninguém. Mas apenas 26% dos profissionais consideraram a pioglitazona como medicamento com benefício cardiovascular comprovado.

Qual foi o grau de compreensão dos participantes sobre o tratamento da obesidade?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Quando perguntamos o que a médica e o médico fazem se o paciente perder peso numa quantidade interessante, e 32,2% dos endocrinologistas disseram que suspendem o tratamento, ficou claro que eles não consideram a obesidade uma doença crônica. No geral, 47% dos respondentes entendem que o tratamento deve ser para a vida toda. Aí entra uma questão que é clássica no nosso dia a dia: no consultório, o médico prescreve um remédio, o paciente diz que “embalou” na perda ponderal e que agora seguirá o tratamento sozinho. Não podemos cair nessa, porque não é assim que funciona. Nosso corpo fará o possível para voltar ao peso anterior. Há um estudo interessante, que mostrou bons resultados com medicamentos prescritos justamente na fase de manutenção, porque a obesidade é uma doença recidivante.

Considerando que a obesidade é, sabidamente, uma doença crônica, outro aspecto que precisa urgentemente ser discutido enquanto política de saúde pública é a introdução de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente, a pessoa com obesidade tratada na rede pública passa da indicação de dieta para a cirurgia bariátrica, saltando o tratamento clínico. Isso é muito ruim e precisa ser corrigido. Além de beneficiar a saúde dos pacientes, há um custo-benefício muito positivo na oferta do tratamento clínico. Acho importante ainda lembrar que o Brasil é um país com média de índice de massa corporal elevado, e há cada vez mais pessoas com obesidade e sobrepeso.

Outro aspecto abordado na pesquisa, mas pouco discutido, foi a associação da obesidade com a compulsão alimentar. O que se descobriu?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: A compulsão alimentar atinge cerca de 1% a 2% da população geral, mas está presente em 30% a 40% das pessoas com obesidade. Como dificilmente alguém chega ao médico dizendo que tem compulsão alimentar, caberia ao profissional aplicar um questionário [de triagem], a ser preenchido pelo paciente enquanto ainda está na sala de espera. Mas a maioria não faz [essa verificação], e por isso quisemos trazer à tona, na pesquisa, esse problema de saúde pública que causa tanto sofrimento. Muitas vezes, esse paciente faz tratamento com endocrinologista, mas não com um psiquiatra. E muitos psiquiatras não sabem como lidar com transtorno de compulsão alimentar, então é comum o paciente tomar medicamentos para a obesidade, mas a compulsão seguir sem tratamento. Na prática, o transtorno de compulsão alimentar é uma doença relacionada com a psiquiatria e com a endocrinologia, porque é um problema psiquiátrico com repercussões endócrinas. No entanto, apenas 8,5% dos participantes disseram que encaminham os pacientes ao psicólogo. Entre os endocrinologistas, apenas 5,6% o fazem, percentual que aumenta para 17,8% entre os cardiologistas. Perguntamos aos participantes também sobre medicamentos para tratar a compulsão alimentar. De acordo com as respostas, diante de pacientes que sofrem de compulsão alimentar, os médicos brasileiros tendem a fazer indicação de medicamentos off-label. Em geral, apenas 25,8% indicaram a lisdexanfetamina e, entre os endocrinologistas, essa prescrição foi apontada por apenas 31,3%.

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Isso é muito necessário. Em um estudo muito bonito, um grupo de pesquisadores selecionou 344 pessoas com compulsão alimentar diagnosticada e as submeteu a consultas com médicos de diferentes especialidades clínicas. Apenas 11 pacientes receberam diagnóstico de compulsão alimentar nesses atendimentos. Diante dessa situação e dos achados da pesquisa, estou cada vez mais convicto de que é muito oportuno trabalhar a interface entre a psiquiatria e a endocrinologia, especialmente na abordagem da obesidade. Isso funcionará muito bem para os dois lados, porque muitos psiquiatras não sabem como lidar com o transtorno da compulsão alimentar, por exemplo. E também é bastante provável que esse ainda seja um transtorno que precisa ser muito mais conhecido pelos especialistas que cuidam de pessoas com diabetes. Inclusive, queremos fazer um congresso com esse tema.

A pesquisa mostrou contradições com relação à abordagem do transtorno depressivo. Pode comentar?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Vimos que 27,9% dos respondentes tratam pacientes com suspeita de transtorno depressivo porque se sentem capacitados para isso, enquanto 7,1% não se sentem preparados (grupo em que eu me incluo) e gostariam de se capacitar. Ao mesmo tempo, 62,2% receitam medicamentos antidepressivos. A conta não fecha. Pode ser que isso tenha relação com a famosa “síndrome da maçaneta”, quando o paciente está saindo do consultório, abre a porta, se volta e diz: “Doutor, meu psiquiatra está fora e eu preciso de uma receita. E aí o médico acaba prescrevendo porque trata esse paciente há 10 anos. Não é assim que deveria funcionar. Um ponto positivo é que 60% disseram encaminhar esses pacientes a especialistas. Porém, 4 em dez não fazem o encaminhamento.

84% dos endocrinologistas e cardiologistas que participaram da pesquisa raramente ou nunca pedem exame de elastografia hepática. Qual o impacto disso?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: A presença de gordura no fígado acomete 80% das pessoas com diabetes e 30% da população em geral. Mas dizer que uma pessoa tem gordura no fígado não significa muita coisa. O médico precisa saber se é só gordura, se é uma gordura somada a inflamação (esteato-hepatite), se há fibrose ou não, se a fibrose já é uma cirrose.

Quem não pede a elastografia está perdendo essas informações. Lembrando que é um exame coberto pelos convênios médicos e feito também pelo SUS. Outro dia, veio um paciente trazer o resultado de uma elastografia e vimos que havia cirrose, o que muda toda a abordagem. E qual é a pessoa com gordura no fígado que tem mais risco de o seu quadro evoluir pra cirrose? A pessoa com diabetes! Há uma epidemia de gordura no fígado que precisa de rastreamento, e os pacientes estão debaixo do nosso nariz. Temos que pedir mais exames de elastografia hepática. Não pedir esse exame é como dizer que a pessoa está com problema de coronária. Mas qual coronária? Quantos por cento de obstrução e onde? Uma coisa é ter um pouco de gordura, sem inflamação nenhuma. Outra é ter uma fibrose grave que caminha para se tornar cirrose. Já existem medicamentos que podem melhorar esse quadro e, quando não diagnosticamos o problema, estamos deixando de tratar essas pessoas.

E quanto ao tratamento da hipertensão arterial, como estamos?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: As diretrizes para tratamento da hipertensão foram pioneiras em recomendar uma terapia combinada, com mais de um medicamento. Principalmente se o paciente tiver diabetes. No entanto, 25% dos participantes da pesquisa não escolheram essa opção para estabelecer a terapia anti-hipertensiva para indivíduos com diabetes, justamente os que mais precisam dessa abordagem multifatorial. Para completar, cerca de metade dos respondentes acreditam que medicamentos bloqueadores de receptores da angiotensina (BRA) e inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA) são semelhantes, o que também não é 100% correto. Outra vez, a pesquisa mostra que temos muito espaço para aprender ainda mais sobre o elo entre o diabetes e as doenças cardiovasculares.

Sobre a anticoagulação dos pacientes diabéticos e com problemas cardiovasculares, o que chamou a sua atenção?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: De acordo com as diretrizes, pacientes com diabetes que já tiveram infarto agudo do miocárdio deveriam usar anticoagulante em baixas doses e ácido acetilsalicílico (AAS). No entanto, 90% dos respondentes não indicaram essa combinação — o que preocupa bastante. A colchicina também poderia ter sido apontada na pesquisa como uma das opções para prevenir novos infartos em quem já teve um, afinal sabemos que o risco de recorrência do problema é grande nesses pacientes. O mesmo ocorre como a pioglitazona, que está sendo muito menos prescrita do que deveria. Por sua vez, o uso de inibidores de SGLT2 e de agonistas dos receptores de GLP-1 precisaria ser considerado — para não dizer priorizado. Também me surpreendeu que boa parte dos pacientes que fazem anticoagulação não fazem tratamento de proteção gástrica. Isso me chamou a atenção, porque uma das coisas básicas do tratamento com anticoagulação é a proteção gástrica, pois o que mais se teme nesses casos é o sangramento gastrointestinal. Mas a pesquisa mostrou que o uso dessa proteção foi indicado apenas por 4,5% dos médicos. Entre os cardiologistas, que são os especialistas que mais lidam com isso, só 9% indicam proteção gástrica. Precisamos reforçar ainda mais essas diretrizes com a classe médica.

O que falta para os médicos terem uma percepção melhor dos vários aspectos relacionados ao cuidado com diabetes, obesidade e doenças cardiovasculares?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Vou ser sincero: ter mais acesso a congressos e melhorar a interpretação de estudos clínicos. Falta mais estudo e acesso. E há uma terceira questão que é a inércia terapêutica. A pandemia mostrou que muitos médicos não sabem interpretar um artigo científico. Quando eu me formei, por exemplo, o LDL deveria ser 130 mg/dl para pessoas com diabetes e que tiveram um infarto. Hoje, deve ser abaixo de 50 mg/dl. Quanto à mencionada inércia terapêutica, ela se dá quando você está diante de um paciente com 70 mg/dl de colesterol LDL, sabe que a meta para essa pessoa é de 50 mg/dl de LDL, mas deixa para conversar sobre isso na próxima consulta.

Diante de tantas informações, o que fazer?

Dr. Carlos Eduardo Barra Couri: Tudo isso mostra a necessidade de uma intensificação na educação médica. Às vezes ficamos preocupados com a inovação, com as novidades, com os lançamentos e o que essa pesquisa me mostra é: precisamos dar um passo pra trás pra andar três pra frente. Está faltando base. São temas nevrálgicos que vamos priorizar nas ações de educação médica. Estamos mostrando dados às sociedades médicas para que sejam discutidos e possam ajudar na definição das ações de educação médica.

A íntegra da pesquisa pode ser lida ou baixada no site do Diacordis .

Fonte: The Hard.org – Medscape – Por: Mônica Tarantino, 03 de janeiro de 2023

” Os artigos aqui postados são de responsabilidade exclusiva de seus autores e respectivas fontes primárias e não representam a opinião da ANAD/FENAD”