A maioria das diretrizes médicas mundo afora afirma: a primeiríssima escolha para tratar alguém com diabetes tipo 2 deve ser a metformina, substância descrita no longíquo ano de 1922 e que passou a ser usada como comprimido para controlar a glicose no sangue em 1957, na França. Os Estados Unidos só a aprovaram em 1995, um tempão depois. É que havia outra droga, prima da metformina e mais potente até, capaz de provocar acidose láctica, uma reação que, ao tornar o sangue mais ácido, pode levar a queda de pressão, alterações do batimento cardíaco e outros perrengues.
“Mas raramente a metformina causa o problema. Além de eficaz, ela sempre foi segura e os europeus sabiam disso”, garante o endocrinologista Mario Saad, que é professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e um dos personagens centrais de uma das mais fascinantes histórias da ciência dos últimos tempos, que acaba de virar artigo na Proceedings of the National Academy of Sciences, ou seja, na revista da Academia Americana de Ciências.
Ora, é incrível ver que uma molécula centenária e das mais usadas em um planeta que tem perto de 540 milhões de indivíduos com diabetes age de um jeito completamente diferente daquele que sempre se imaginou. Achava-se, até o estudo brasileiro de agora, que a magia da metformina para reduzir a glicemia acontecia no fígado. Mas que nada! Seu palco principal é o intestino, para onde ninguém tinha olhado antes e, se olhou, não deu a menor bola para o que a substância estava fazendo por ali.
Essa mudança de endereço faz total diferença para tornar o medicamento, nas palavras do professor Saad, único. “A metformina é uma droga inteligente. Porque, se a glicemia estiver muito alta, ela cairá bastante graças ao remédio. Mas, se estiver só ligeiramente acima do normal, diminuirá bem pouco”, diz ele, que figura em listas dos cientistas mais influentes do mundo.
Mas ouso dizer que o professor nem aprovaria eu contar isso aos leitores. É daqueles que, depois da entrevista, manda um recado para frisar que, além do seu departamento da Unicamp, vários laboratórios e pesquisadores participaram do trabalho, inclusive de outras instituições, como a USP (Universidade de São Paulo), o Instituto Butantan e a Unesp (Universidade Estadual de São Paulo).
A lenda é de que, quando Mario Saad conversa com seus alunos, o relógio para, sem querer apressar uma boa prosa. E também parou para ele contar o caso de metformina. Ou seria o acaso? Sim, a história é ainda mais envolvente porque a descoberta aconteceu sem querer, o que em ciência é chamado de serendipidade.
Graças a esse golpe inicial de sorte — e, claro, a uma investigação minuciosa que consumiu dez anos —, em tempos em que alguns até questionam se a velha metformina deveria continuar sendo a primeira escolha para tratar o diabetes diante de novidades nas prateleiras das farmácias, como os inibidores de SGLT2 e os agonistas de GLP-1, o estudo prova que, na realidade, o lugar desse medicamento é mesmo insubstituível.
Todos Olhavam Para o Fígado
Enquanto a gente dorme, os diversos tecidos do corpo continuam consumindo o açúcar disponível — o cérebro, então, faz isso feito um doido! Mas, apesar do jejum noturno, ninguém costuma acordar com hipoglicemia. Isso porque o fígado produz glicose durante toda a madrugada, mantendo seus níveis na circulação.
“A primeira ação descrita da metformina foi justamente o bloqueio dessa produção hepática”, conta o professor Saad. “E, de fato, você encontra um aumento de liberação de glicose pelo fígado nas pessoas com diabetes.”
Nelas, essa glicose extra não consegue entrar nas células e fica dando sopa na corrente sanguínea. “Como a gente acreditava que era essa a forma de ação, o que se viu foi uma competição para descobrir os mecanismos moleculares do remédio no fígado”, conta o médico. “Uns achavam que ele inibia uma enzima, outros apostavam que estimulava certa substância…”
A dificuldade para se chegar a um acordo era que tudo parecia mudar conforme o animal estudado e a dose da medicação. Até que há aproximadamente uma década.
“Esse Remédio Está Atrapalhando”
Mario Saad ouviu a frase de um colega da Unicamp. Eles, na época, realizavam uma pesquisa para saber o que acontecia com a gordura marrom de pacientes com diabetes após uma cirurgia bariátrica.
“Em vez de armazenar energia, a gordura marrom que temos, por exemplo, em volta do pescoço faz o contrário: ela gasta”, explica o professor. Portanto, consome glicose.
Na Medicina Nuclear, essa molécula é marcada com flúor-18, que emite radiação permitindo ao exame de imagem entregar onde está sendo usada.
“Precisamos tirar a metformina dos participantes por três dias”, disse então o tal colega. “Porque, quando eles tomam o comprimido, aparece uma captação muito alta da glicose no intestino.” Para ele, esse sequestro de boa parte das moléculas com flúor-18 injetadas na veia dos indivíduos dificultava visualizar a bendita gordura marrom.
Mario Saad, por sua vez, lembra que pensou: “Que bacana! Pode ser um segundo mecanismo de ação de metformina, diferente daquele do fígado”. E foi estudá-lo.
Quem Transporta a Glicose Para o Intestino?
Esta foi uma das primeiras perguntas que ele se fez. E explica: “As pessoas imaginam que o intestino usa a glicose que vem do alimento que está passando por ele. Mas não funciona assim. Ele a tira da circulação sanguínea”.
A questão é que essa molécula nunca entra sozinha em uma célula. Ela sempre pega carona em um transportador. Que, no caso do intestino, classicamente é uma molécula chamada GLUT-2. “Fomos checar e, em ratos e camundongos, a metformina realmente aumentava os seus níveis”, recorda-se o professor. Na sequência, ele e seus colegas bloquearam a GLUT-2 nos animais de laboratório. E, mesmo assim, a captação da glicose pelo intestino continuava nas alturas. “Concluímos que deveria existir, então, um segundo transportador”, explica.
Tinha mesmo, o GLUT-1, molécula que geralmente só é encontrada em fetos para o intestino retirar a glicose do sangue materno. “Após o nascimento, esse transportador desaparece”, revela o professor.
“Mas a metformina faz seus usuários reviverem uma situação fetal, digamos assim.” Qual a vantagem disso? “Os dois transportadores trabalham com concentrações diferentes de glicose no sangue. O GLUT-1 age quando ela está só um pouco alta. E o GLUT-2, quando ela está muito elevada.”
É por isso que a metformina faz uma glicemia de 300 miligramas de glicose por decilitro de sangue despencar para 180. “Porém, se a taxa de glicose de um indivíduo é de 150 miligramas por decilitro, ela vai ficar em torno de uns 120 com a medicação. Daí que o risco de hipoglicemia é zero”, assegura Mario Saad.
O mecanismo de controlar o diabetes aumentando a captação de glicose pelo intestino tampouco leva ao aumento de peso, o que é mais um ponto favorável à metformina.
O Que Realmente Acontece
Os cientistas brasileiros também foram olhar o que acontecia com toda aquela glicose no intestino. “Ela não fica armazenada nele. É transformada depressa em dois ácidos, o acético e o láctico”, conta o professor Saad.
Saindo desse órgão, a dupla de ácidos pega o caminho da veia porta, que passa pelo fígado antes de tudo seguir para o coração. Esse trajeto com escala é uma estratégia de proteção adquirida na evolução das espécies: assim, se você ingere uma toxina, ela é eliminada pelas células hepáticas antes de se espalhar da cabeça aos pés.
Mas, no caso, quando o pH do chamado sistema porta baixa por causa dos dois ácidos trafegando por ali, inicia-se uma reação que culmina com o bloqueio de proteínas por trás da síntese de glicose no fígado. “Portanto, é o que acontece no intestino que leva a esse efeito que a gente já observava”, conclui Mario Saad.
Ele menciona que há, inclusive, uma nova metformina chegando nos Estados Unidos, a qual é liberada lentamente no nosso organismo. Ela acaba chegando em doses baixíssimas no fígado. No entanto, a diminuição da glicose hepática é igual à da versão convencional do remédio. “Agora está explicado o porquê: é que a concentração continua sendo boa no intestino”, comenta o médico.
Falsa Concorrência
As novíssimas medicações — bem mais caras, por sinal — merecem boas-vindas, até pelos estudos provando que são capazes de reduzir a mortalidade entre os indivíduos com diabetes. “Só vamos lembrar que os participantes desses trabalhos muitas vezes usavam, junto, a metformina”, ressalva o professor.
De qualquer modo, uma doença tão complexa precisa de diversas ferramentas para ser controlada. “Nenhum medicamento sozinho vai dar conta”, reconhece Mario Saad. De uma coisa, porém, ele está convencido: não importa a combinação de drogas contra o diabetes, a metformina sempre deveria estar entre elas. Ela agora é uma espécie de clássico revisitado.