Saúde e autonomia

Por Olímpio Bittar

As funções do Estado são fundamentais para a regulação dos serviços executados por órgãos governamentais e por instituições privadas filantrópicas ou lucrativas. è o caso da saúde, direito fundamental do cidadão, responsabilidade do Estado ( e do cidadão) na qual o conceito de autonomia tem papel  preponderante na implementação de políticas de saúde pública que se efetivam em programas e serviços desenvolvidos dntro e fora de unidades de atendimento.

Nas atividades administrativas, autonomia pode ser definida como uma decisão tomada com controle posterior, diferentemente de centralização, desconcentração ou descentralização decisória, nas quais há um grau de controle prévio, ou da independência, em que não há controle nem recurso posterior.

Atualmente, a administração pública de órgãos centrais, regida pela administração direta do Estado ou por autarquias tem processo decisório centralizado, muito pouco desconcentrado, inviabilizando respostas rápidas às necessidades de saúde da população e por vezes oferece unidades sem condições de atendimento – com equipes incompletas, equipamentos fora de funcionamento e até mesmo falta de insumos.

O enfrentamento da judicialização da saúde requer autonomia para que se obtenha boa resolução

A centralização, a má burocracia ( criação de regras em excesso ) para a contratação de um único servidor público, exige a realização de concurso público, modalidade que consome no mínimo 134 dias até o profissional chegar ao seu posto de trabalho, caso não ocorram recursos legais impetrados pelos demais candidatos. Embora a aquisição de materiais ou a contratação de serviços tenham evoluído nos últimos anos com os pregões eletrônicos, os processos de compra ou contratação de serviços somente se realizam depois de 30 dias, em média 60 dias.

Tendo em vista que um bom contrato estabelece metas, que são definidas como objetivo quantificado e qualificado a ser obtido em determinado período, a falat de autonomia pode inviabilizar que sejam realizados contratos adequados às necessidades reais das regiões e assim prejudicar atendimentos ambulatoriais, exames complementares e internações.

Como definir políticas de saúde, prover ações de vigilância sanitária e regulação da assistência num órgão central como as Secretarias de Saúde, ou atender em um pronto-socorro , dependente de recursos humanos, recursos materiais, financeiros e informacionais, com períodos de aquisição de mão de obra ou insumos tão longos com entraves e incertezas em todo o processo ? Isto retira do gestor público o controle dos atos inerentes a uma boa administração e também  teoricamente parte da responsabilidade assumida perante o cargo, que é responder tecnicamente, com segurança e rapidez as demandas assistenciais, de pesquisa e ensino, embora continue sujeito às penalidades impostas pelos órgãos de controle no caso de não alcance de metas.

Ao longo do tempo foram criadas entidades jurídicas visando maior autonomia de gestão, como as autarquias, as fundações de direito público e privado, as organizações sociais de saúde, as agências, algumas com maior liberdade de ação, outras nem tanto, mas que melhoraram a agilidade na administração permitindo maior qualidade e produtividade.

A terceirização de serviços foi outro avanço na contratação e reposição da mão de obra, fortemente instalada na infraestrutura  das unidades ( limpeza, alimentação, segurança, transporte )e, em alguns casos, contratos têm o aporte de equipamentos e aquisição de insumos, o que facilita a operação. Porém, nas atividades fins, realizadas no ambulatório, na emergência e na internação, existem restrições legais ao uso da modalidade, excetuando-se casos como serviços de anestesia e alguns complementares de diagnóstico como laboratórios de análises clínicas.

É fato que nas áreas de contato direto com clientes e pacientes, a estrutura e os produtos são complexos, complicados, de alto risco e alto custo, dependentes de processos de integração entre profissionais e equipes que podem ser dificultados por diferentes regimes de contratação, mas nada que não possa  ser solucionado com investimento em capacitação, interação entre o contratante e a contratada, negociação e monitoramento dos resultados dos serviços estabelecidos em contrato. É um processo de ajuste cultural visando maior qualidade e produtividade.

A falta de autonomia também interfere nos bons resultados, quando dificulta remunerar adequadamente, reconhecer o trabalho do funcionário, fornecer benefícios, inclusive os que trazem retorno para a instituição, como treinamentos e reciclagem, substituir o profissional quando necessário, isto tudo desestimulando as avaliações profissionais periódicas.

As instituições de saúde devem estar preparadas para possíveis demandas que, mesmo quando legítimas, necessitam de análise técnica e administrativa para viabilização de acordo com parâmetros epidemiológicos e demográficos. O enfrentamento da chamada judicialização da saúde, que interfere fortemente nas previsões orçamentárias pelas despesas inesperadas e muitas vezes não embasadas em pareceres técnicos ou administrativos, requer autonomia para que se obtenha boa resolução.

Na era digital, as ações públicas podem ser quantificadas e qualificadas em tempo real, por meio de sistemas que permitem reunir, analisar e sintetizar grande quantidade de variáveis que influem no processo saúde/doença e nos resultados de programas e serviços de formas modernas, inteligentes, evitando fraudes e desperdício de recursos, garantindo maior agilidade, transparência dos atos administrativos e, por não, reconhecendo os melhores gestores.

O poder Executivo, conhecedor das consequências destas amarras, deveria propor discussão com os poderes Legislativo e Judiciário, incluindo órgãos de controle, no sentido de garantir autonomia que permita às unidades públicas da administração direta e da indireta o alcance de metas a custo compatível com o atendimento de qualidade à população.

Fonte: Valor Econômico

Olímpio J Nogueira Bittar é médico especialista em Saúde Pública